FUTEBOL, CABRAMACHISMO E O CRAQUE
Jarbas Gomes Machado Avelino
Advogado, Professor e Historiador
Futebol é cultura? Desde que se pense cultura como algo ordinário, fazer humano, a resposta é afirmativa. E se a cultura é o lugar onde são construídas significações, interpretações, sentidos sobre o real, é razoável imaginar que o futebol, enquanto manifestação cultural, é uma prática social que reproduz, reafirma, sentidos, valores, modos de ver e sentir socialmente elaborados. Ou seja, o futebol é um espelho da realidade.
Embora não discorde totalmente desta perspectiva, o que proponho aqui é algo um pouco diferente: que tal ler o futebol, em seu acontecer, não como a expressão de valores socialmente compartilhados, mas como lugar social a partir do qual se instauram, se fundam, se veiculam representações e valores em torno do real, com o futebol deixando de ser espelho, projeção, para se converter em espaço de invenção de um real enquanto virtualidade.
Ultrapassada a premissa, proponho que se veja o futebol como um espaço social onde a violência, física e linguística, parece gozar de ares de licença poética. Lugar onde mulheres e homens se irmanam no exercício panfletário de xingar o adversário. E as crianças, desde cedo, parecem ser iniciadas num ritual recorrente de virilidade linguística. A propósito, quem nunca ouviu o cântico de uma torcida, além de exaltar seus ídolos, alfinetar, agredir o adversário, atribuindo à comunidade imaginada que ocupa o outro lado da arquibancada adjetivos que, na simbologia do futebol, seriam desonrosos, entre os quais, a atribuição de modos femininos ao adversário, a caracterização do outro como cabra menos macho.
Essa exortação do cabramachismo no futebol encontra ressonância, dentro de campo, no jogador violento, por vezes, denominado xerife, o qual personifica atributos tipicamente masculinos: a valentia, a coragem, a força, o poder, a virilidade, o espírito conquistador daquele herói bárbaro que habita dentro de cada torcedor. O xerife representa o realismo no futebol, a morte da fantasia, o pavor ao erro, a enorme dificuldade da vitória, que parece sempre esbarrar no modo rústico de tratar a bola, objeto totêmico arredio à truculência e à falta de jeito.
No pólo oposto ao xerife, ao zagueiro viril, o futebol oferece o craque, o camisa 10, o jogador que desafia a métrica, subverte a regra, aquele que nos faz acreditar na magia, que não teme errar, que faz ruir muros concretos em segundos, que abre brechas onde só parecia existir o concreto, inventa espaços, diluindo as fronteiras entre o sonho e a realidade, a verdade e a ficção.
A torcida, ao sabor da ocasião, transita entre a exortação ao xerife, e juras de amor ao craque.
Nesse movimento dialético entre força e delicadeza, entre o masculino e o feminino, é o xerife o jogador que redime nosso senso de cabramachismo, ao investir contra a perna do adversário, mediante a adoção de táticas de guerra, para parar a genialidade do craque.
De sua parte, o craque, com charme, sutileza, e maior senso de abstração, movimentos harmoniosos e de apurada sensibilidade, faz lembrar a bailarina. A sua arma é o drible, esse riso nobre e altivo, como confirmação da estética de uma delicadeza tão apreciada no futebol, sobretudo o brasileiro.
A valentia do zagueiro sem recursos confirma a estética bárbara do poder e da força, ao tempo em que o drible é a positivação da estética da sutileza, que tanto lembra a delicadeza da mulher.
É certo que cada qual conclui o que quiser. Já eu, sendo brasileiro, não consigo vislumbrar o futebol como lugar onde se possa propor uma realidade marcada pela valentia do xerife apenas, mas pela afirmação de masculino e feminino como alteridades sem as quais só resta a intolerância e a barbárie.
sexta-feira, 8 de julho de 2011
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