terça-feira, 2 de março de 2010

QUANDO CONHECER É AVENTURA SEM DEUS E SEM PLATÃO

Em tempos de crise e perda das referências mais cálido-estáveis que nos alentavam a alma embalsamada de cruz e metafísica, parece ser menos obsceno substituir as frívolas respostas prontas por perguntas ávidas por enfiar nas certezas um fardo cínico que precisam suportar. Nesse cenário em processo de derretimento dalineano, pergunto: como é que se faz pra parir o conhecimento? Quais as teias entre este e os objetos dados a conhecer?

A partir de Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, podemos partir de uma oposição fundamental entre origem (Ursprung) e invenção (Erfindung), sendo certo que a escolha por uma delas levará a conseqüências práticas e teóricas bastante distintas.

O conhecimento entendido a partir da idéia de origem, idéia aliás muito atraente aos bacharéis em direito, articula-se à perspectiva de um começo solene, no qual o conhecimento, embebido de metafísica, é a percepção, o reconhecimento, a identificação das coisas dadas a conhecer. Há nisso algo de um esforço de estabilizar, apaziguar, comunhão beata, com as coisas a conhecer, firmando-se entre conhecimento e coisas a conhecer uma relação de continuidade temporal, ou, de outro modo, com o conhecimento apenas declarando as coisas do mundo, pois estas estariam impregnadas de uma essência pétreo-divina, de uma existência ôntica estável.

Sintam, senhores e senhoras! Respirem fundo e percebam nos arredores que há um fedor de morte no ar! Posicionamento filosófico ante o mundo de feição essencialista, metafísica, bem ao gosto platônico-moderno, para quem haveria uma relação de afinidade entre conhecimento e as coisas a conhecer, com o sujeito de conhecimento sendo, de sua parte, entendido a partir de uma cálida perspectiva de unidade e soberania, um ser já pronto, idêntico a si mesmo, que, a partir de piruetas narcísicas, desvelaria as coisas em sua existência essencial.

Ora, vejam só! O conhecimento, então, é apresentado como encontro com a natureza, algo apaziguador e estável, havendo, por aí, as verdades pétreas, dadas, em estado latente, implícito, bastando que se atinja a tão sonhada harmonização entre o conhecimento em torno das coisas a conhecer e a sua própria existência.

Mas o que se propõe cá neste sítio não é a edificação de mais um templo barroco dedicado ao culto platônico, e sim enfiar o martelo nietzcheano nos existentes. Assim, sobre como se dá a construção do conhecimento, preferimos a categoria invenção, no que nos dissociamos da idéia de que os objetos dados a conhecer seriam portadores de um núcleo essencial, e adotamos a compreensão de que as coisas a conhecer acontecem, aparecem em razão e no âmbito de relações de força, de relações de poder, inexistindo verdades estáveis, com a solenidade da origem sendo substituída pelos começos mesquinhos das fabricações desses objetos, as quais se dão, não raras vezes, a partir de um começo nada nobre, nada solene, nada edificante, e sim um começo pequeno, meticuloso, ávido por constituir-se em saber-poder.

Por essa visada, ao falarmos de invenção do conhecimento em detrimento de origem, há dois sentidos importantes a destacar: primeiro, conhecer não é algo natural, ao contrário, conhecer é contra-natural; segundo, o conhecimento não possui qualquer afinidade prévia com o mundo a conhecer.

A partir do entendimento de que o conhecimento é distinto da natureza humana, sendo mesmo uma construção contra-natural, bem como da diferença entre conhecimento e mundo a conhecer, na trilha de Nietzsche e Foucault, defendemos que esta relação é antes marcada pela ruptura e não pela semelhança, por relações de poder arbitrárias, violentas, de dominação e não pela estabilidade e harmonia, resultando não de condições universais, mas de condições histórica e pontualmente dadas, pois o mundo a conhecer, por si mesmo, não é uma realidade dotada de harmonia e estabilidade.

Pelo que se vê, ou pelo menos pelo que busco fazer crer, a Filosofia ocidental, desde Platão, sempre caracterizou o conhecimento pelo logocentrismo, pela semelhança, pela adequação, pela beatitude, pela unidade, a partir da idéia de origem. Porém, quando submetida à crítica nietzscheana, dá lugar à inserção no cerne do conhecimento da idéia de luta, relação de poder. Agora, dia do juízo final, Platão é enredado em maus lençóis ao ter deslindada sua dualista visada de caverna.

Portanto, Nietzche teria proporcionado uma importante ruptura com a tradição da filosofia ocidental, consistente no rompimento entre o conhecimento e as coisas. Mas onde entra Deus nesse enredo caverno-platônico? Segundo Foucault, é precisamente Deus e sua imanência, impregnadora nas coisas do mundo de essências, que asseguraria, na filosofia ocidental, uma relação de continuidade entre conhecimento e as coisas do mundo. Nesse sentido, que fale Foucault, antes que o deturpemos, já que esta é a nossa intenção, qual seja, não só compreender, mas fazer gemer aquilo que lemos:

O que, efetivamente, na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbitrariedade? O que garantia isso na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir além e ainda mesmo Kant, é esse princípio eu assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer”.

Assim, se concebemos um mundo sem Deus, admitimos que, afastada a idéia de essência relativamente às coisas dadas a conhecer, o conhecimento não têm como fim harmonizar-se com o mundo, estabilizar-se com ele. Ao contrário, o conhecimento, enquanto invenção, fabricação humana, é construção inafastavelmente inscrita na história, tendo um caráter perspectivo, no sentido de parcial, não íntegro.

Essa concepção do conhecimento enquanto realidade dotada de caráter perspectivo aproxima-o de uma dimensão polêmica, estratégica, constituída no âmbito de relações de poder e de força, sendo o efeito de uma batalha. Então, subverter a tradição de pensamento ocidental hegemônica passa por “desessencializar”, “desplatonizar”, e, pasmem os crentes, cometer um sacrílego deicídio. Tal decisão é inafastável se queremos nos dar de presente a possibilidade de afastar a idéia de existência de algo imutável, idêntico a si mesmo, necessariamente justo, pela percepção das coisas a conhecer enquanto acontecimento, e o conhecimento delas como algo perspectivo, no sentido de parcial, arbitrário, e não seu espelho.

Assim, para conhecer, melhor parece ser “despetrificar”, “dessubstancializar” o mundo e suas coisas, para inscrevê-las em uma ontologia relacional, não dura, inventada e reinventada no curso de um baile, num curso mutante da existência dependente dos ventos mansos e/ou estridentes, como o baile que acomete-arrebata a silhueta nada perene das dunas, por exemplo, de uma lagoa imaginária em forma de porto pequeno em tardes de setembro!