segunda-feira, 31 de agosto de 2009

IV CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO

Ocorrerá, entre os dias 16 a 18 de setembro de 2009, na Faculdade de Direito da USP, o IV CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO. O evento terá o seguinte tema: AUTONOMIA DO DIREITO: configurações do jurídico entre política e sociedade.

Está prevista a participação de vários convidados internacionais, tais como: António Manuel Hespanha (Portugal), Carlos Petit (Espanha), José Ramón Narváez (México), Marco Sabbioneti (Itália), Massimo Meccarelli (Itália), Paolo Cappellini (Itália), Stefano Solimano (Itália) e Thomas Simon (Áustria).

O evento será gratuito e as inscrições poderão ser feitas no sítio: www.ibhd.org.br.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

ESTADO LAICO E SOCIEDADE PLURALISTA

Transcrevo abaixo, na íntegra, artigo de minha autoria publicado no Jornal Meio Norte do dia 27 de agosto de 2009.

O texto versa sobre o tema da retirada ou manutenção das imagens de santos e outros símbolos religiosos em prédios públicos. Segue:



ESTADO LAICO E SOCIEDADE PLURALISTA

Jarbas Gomes Machado Avelino
Advogado/Professor

A propósito do debate em torno da permanência ou não das imagens de santos e demais símbolos religiosos no interior de prédios públicos, parece-me de bom tom, antes de mergulhar na discussão de mérito, historiar um pouco a sua emergência, como ele nasceu, quem o fez ganhar as ruas, as páginas de jornais, as várias mídias, o ambiente acadêmico.

O debate surgiu a partir de uma representação formulada ao Ministério Público Estadual, que contou com a assinatura de 14 organizações da sociedade civil, entre as quais uma de feição católica.

Acerca da instauração do debate, dois pontos me parecem particularmente interessantes: primeiro, a discussão não foi levantada apenas por setores não católicos, eis que há presença de grupo que se qualifica como tal e que assinou a representação, circunstância que fragiliza qualquer desejo de desqualificar o debate a priori sob a alegação fácil e maniqueísta de que se trataria de movimento patrocinado por um grupo de sectários não católicos; segundo e mais importante, o debate emergiu da sociedade civil, que provocou o MP para a necessidade de discutir o tema, e de, se necessário, judicializá-lo.

Ora, ante tal debate, ao invés de demonizá-lo a priori a partir da retórica desqualificação de seus propositores, como se ainda pudéssemos lançar mão de fogueiras inquisitoriais aptas a punir hereges incorrigíveis que teimam em desafiar as verdades sacras, acredito que deveríamos observar que estamos diante de autêntica exercitação de atividade hermenêutica formulada no âmbito de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição da República, sobretudo do seu art. 19, I, nos moldes preconizados por Peter Haberle.

A propósito, segundo o referido art. 19, I, da CF, nenhum dos entes federativos (União, Estados e Municípios) pode estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Pela dicção do dispositivo constitucional, entendo o Estado laico como aquele que, por um lado, não assume preferências, não patrocina, não funciona como veículo para a propagação privilegiada de qualquer credo religioso, e, por outro lado, não cria qualquer embaraço ou impedimento ao livre exercício das manifestações religiosas.

Aqueles que defendem a permanência de imagens de santos e congêneres em repartições públicas, via de regra, fundamentam sua posição a partir de dois pontos: de um lado, a presença das imagens de santos e congêneres não violaria a laicidade do Estado, eis que seriam manifestações da cultura brasileira, as quais chegam a ser caracterizadas como naturais; de outro, o Estado laico não deveria ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anti-clerical, de modo que não deve eliminar os símbolos religiosos, mas tolerá-los.

Quanto ao primeiro fundamento usado pelos que defendem a manutenção das imagens de santos, se a proposta é pensar a fé católico-cristã como manifestação cultural, é inegável a sua importância na própria formação cultural, valorativa e moral da sociedade brasileira, razão por que a religião não poderia deixar de ser protegida pelo legislador constituinte.

Mas a leitura constitucional deve caminhar pela linha da pluralidade, eis que se trata de um documento plural. E nesse sentido, embora reconheça que o cristianismo teve e tem um peso relevante sobre a formação religiosa da sociedade brasileira, tal influência não se deu de maneira exclusiva, bem como se operou em meio a relações sócio-culturais marcadas por profunda assimetria quanto ao poder, em desfavor, sobretudo, das manifestações religiosas dos outros dois componentes étnicos da sociedade brasileira (nativos e africanos).

A sociedade que emergiu, sob o influxo do consórcio poder estatal–cristianismo no Brasil, mostrou-se marcadamente autoritária, com negação, a partir do direito estatal, oficial, das manifestações religiosas e culturais de negros e indígenas, muitas vezes enclausuradas no terreno da marginalidade, da ilicitude, eis que divergentes do padrão cultural e religioso dominante.

Assim, as manifestações cultural-religiosas de feição cristã, por sua associação, desde o período colonial, com o poder estatal, encontraram, historicamente, uma proteção privilegiada pelo direito oficial, estatal, tendo gozado das benesses da oficialidade.

Contudo, o Brasil historicamente vivenciou a pluralidade e o sincretismo em suas manifestações religiosas, porém via de regra escamoteados pela oficialidade do credo cristão, mais íntimo do poder, o que aconteceu desde o inicio da colonização, tendo as manifestações africanas, por exemplo, que se restringir à senzala, depois à periferia das cidades, ao terreno do não oficial, do marginal.

Ocorre que o Estado laico, conforme preconizado pela Constituição da República vigente, é aquele que dissipa as fronteiras da marginalidade na vivência das experiências religiosas e instaura a pluralidade sem privilégios na manifestação livre das orientações religiosas.

Tal orientação se harmoniza com a idéia de que a CF é o documento político-jurídico que congrega os valores mais relevantes da convivência social brasileira, a qual caminha progressivamente no sentido da ampliação da experiência cidadã, que, no caso da vivência da fé, tende a suprimir os privilégios historicamente gozados pelo catolicismo-cristianismo, por sua longa associação com o Estado no Brasil, em benefício da consagração da pluralidade religiosa, deixando assim de existir concepções marginais e concepções oficiais de teor religioso em face do Estado.

De mais a mais, a atuação do legislador e do próprio intérprete não devem ter como referência tão-só o passado, embora seja este de grande relevância, mas também o presente, e os possíveis modelos de sociedade que se quer para o futuro, de modo que nosso horizonte hermenêutico possa abraçar a perspectiva do ultrapassamento sem abandono em relação ao tema discutido, eis que, pela normativa constitucional, é necessário ultrapassar o modelo de Estado ligado à fé, de Estado que prefere, que privilegia, porém sem abandonar a necessária proteção das manifestações religiosas enquanto expressivas de nossa própria instituição como comunidade.

Quanto ao segundo fundamento sustentado pelos que defendem a manutenção das imagens de santos e outros símbolos religiosos, entendo que o Estado laico de fato deve tolerar os símbolos e manifestações religiosas; isso não se discute e essa não me parece ser a questão. Recoloco a questão nos seguintes termos: o Estado laico pode ser utilizado a partir de suas repartições como veículo de divulgação e propagação da fé cristã ou de qualquer outra?

Entendo que não. Isso porque, ao assegurar a livre manifestação dos cultos religiosos, ao tolerar a sua prática, o Estado laico não deve ser entendido como lugar institucional (aparato burocrático) dentro do qual ou a partir do qual se deva exercitar determinando culto, associando-o ao próprio Estado. Nesse caso, a atuação do Estado tem feição inegavelmente liberal, garantidora de liberdade em sentido negativo, na medida em que não se embaraça a liberdade de culto religioso, porém não se a subvenciona, nem se a veicula.

Nesse sentido, concordo que Estado laico não deve ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anti-clerical, ou ateísta, ou agnóstica, de modo que não deve eliminar os símbolos religiosos, mas tolerá-los. De igual modo, não deve ser entendido o Estado como cristão, maometano, ou qualquer outro credo religioso.

Ou seja, o Estado laico não se harmoniza com o acolhimento, ainda que tácito, de qualquer credo, nem mesmo do credo apontado como professado pela maioria, que, só por isso, não se reveste de legitimidade. Laico é o Estado que se abstém de preferir esse ou aquele credo, para afirmar valores caros a uma sociedade democrática, quais sejam, a pluralidade, a diversidade, a tolerância, a liberdade de culto religioso.

E mesmo o recurso à afirmação de que a colocação de imagens se dá por ato individual de funcionários públicos e não da entidade estatal ou do ente federativo sucumbe diante da necessidade de observância do princípio constitucional da impessoalidade no plano da administração pública, além do princípio da igualdade.

Assim é porque o Estado de Direito Republicano deve se fundar na impessoalidade, segundo a qual a atuação estatal é fundada na lei, devendo voltar-se para realizar os interesses individuais e coletivos de todos os administrados, e não de pessoas determinadas, eis que a coisa pública é de todos e não apenas de alguns.

O debate, ao final, deve render algo além da mera confrontação de idéias, o que já é salutar. De minha parte, entendo que a opção pela retirada das imagens de santos e outros símbolos religiosos de prédios públicos inscreve-se no movimento mais amplo de democratização por que passa a sociedade brasileira e de ampliação da experiência cidadã, na medida em que, além de afirmar a tolerância religiosa como valor societal a se projetar no tempo, representa importante testemunho de ruptura concreta com um modelo de Estado excludente que, ao oficializar determinado credo, remetia outros igualmente configuradores da nossa formação cultural para o terreno da marginalidade, assumindo tal postura estatal, pela sua renitente oficialidade, ares de naturalidade.