domingo, 4 de abril de 2010

O OFÍCIO DO HISTORIADOR E AS LEITURAS DO TEMPO

Ler o tempo que flui é um desafio existencial colocado não apenas ao historiador, mas a todos que se vêem sacudidos por este presente que nos ronda, e que traz consigo armadilhas, e poucos pontos de ancoragem.

O lugar/tempo em que nos instituímos como sujeitos se dilatou, e a história enquanto experiência se revela em mudanças cada dia mais velozes e implacáveis nas várias esferas da realidade e nos vários lugares/tempos, que por vezes parecem aos nossos olhos unificados. Como diria Marx, o sentimento é o de que tudo o que é sólido desmancha no ar, aos nossos olhos.

Esse sentimento de viver num mundo permanentemente estranho, porque em fluxo contínuo, desperta nos sujeitos, entre outras sensações, uma vertigem que podemos caracterizar como desenraizamento, perda de referências seguras para encarar o novo, numa palavra, perda de identidade enquanto sentido de pertencer a algum grupo/lugar/tempo determinado. As coisas, os fenômenos, parecem bailar aos nossos olhos, assumindo figuras distintas conforme a perspectiva de quem vê.

O curioso é que esse sentimento de perda de referências seguras, essa crise de identidade, desperta nos sujeitos, como movimento de defesa, um verdadeiro fascínio pela história enquanto narrativa do historiador, enquanto construção. Há uma espécie de demanda social de história que exprime um esforço e uma busca de recomposição do passado, e que se manifesta não apenas em textos acadêmicos, mas também no boom editorial na área, em emissões televisivas, filmes.

Esse paradoxo de eliminação do passado, enquanto experimentação de um presente sem raízes, e de excesso de apelos históricos, põe luz sobre o trabalho do historiador, que pode ser caracterizado como o profissional, com bacharelado em curso de História, que se dedica à pesquisa e escrita desta ciência. Porém, é preciso lembrar que a formação acadêmica é algo mais recente. Basta ver que o maior historiador piauiense não tem formação acadêmica (Odilon Nunes).

Em seu trabalho de representar o passado, o historiador pode exercer o importante papel de pôr em contato os homens do presente com os do passado, estabelecendo entre eles um sentido de continuidade como forma de resgatar os sujeitos do sentimento de solidão e de finitude que experimentam em sua vivência como indivíduos no tempo, fazendo emergir vínculos identitários e assim tornando a história enquanto experiência algo mais confortável, aprazível. A história escrita tem um sentido clínico, totêmico.

Por outro lado, e como movimento contrário, a escrita do historiador pode se prestar ainda a restabelecer a complexidade do real, fazendo explodir pelos ares uma memória coletiva que, enquanto versão dos vencedores, traz consigo um cheiro de morte próprio dos lugares comuns. O historiador é aquele que enfia o martelo nas versões petrificadas e que faz emergir um passado sempre novo, reelaborado, um passado cuja construção se dá no presente, um passado com ar de virgindade.

Outras tantas modalidades de escrita do historiador existem. Seu inventário não se adéqua aos limites deste texto. A opção por uma delas, como diz Michel de Certeau, está ligada à sociedade em que o sujeito está mergulhado, e também a instituição a que está vinculado, que tem seus métodos, técnicas, relações de poder, que possibilita certas construções e interdita outras.

Texto publicado no Jornal Meio Norte, de 26 de março de 2010 (p. B/2)